DOMINGO, 13 DE SETEMBRO DE 2009
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EM CAMPO RASO AS TROPAS DOS
INHAMUNS
GOMES DE FREITAS
O estrugir da roqueira naquela manhã de fim de Inverno, de
um dia de junho de 1719, ecoava nas quebradas distantes, anun-
ciando aos pacatos moradores do Arraial de Nossa Senhora do ó
(Icó) a aproximação da comitiva do Governador da Capitania do
Ceará Grande — Salvador Alves da Silva.
A recepção a que fazia jus personalidade de tamanha impor-
tância, prepara-a o povo, com alegria e dedicação. Casas emban-
deiradas, trajes dominiqueiros, inquietação festiva e nas cozinhas
da "nobreza" a azáfama de mucambas e "slnhás", na disputa das
iguarias para o "banquete".
O povo, voltado para o aparato da "grandeza" presente, exul-
tava, mas alguém no meio do povo trazia o coração referto de
grande satisfação. O governante não andava apenas conhecendo
as paragens dispersas de sua jurisdição. Na maca conduzia mercês
de toda a sorte. Eram títulos honoríficos e despachos de concessões
sesmáricas. O representante do Rei, nas margens do Salgado, entre
o colono rústico e a Indiada esquiva, percebia bem naquele "Viva o
nosso Poderosíssimo Eei D. João V!" o entusiasmo de seus governa-
dos e a voz de comando que os animava. Amigo íntimo do Padre
José Ferreira Gondim, vigário de Goiana e vice-vigárlo de Recife,
olhava com especial deferência para os parentes destes promotores
dos mais ardentes, da festividade.
Quando no salão "nobre" de piso de terra batida de uma grande
casa de taipa, coberta de telha, se desafivelaram as correias da
maca governamental, brotaram da papelama os títulos de Sargento-
-Mor para o ajudante Francisco Ferreira Pedrosa e de Comissário-
-Geral para Lourenço Alves Feitosa (promovido de simples Alferes)
e para Francisco Alves Feitosa a patente de Coronel de Cavalaria.
O primeiro era irmão, o segundo, cunhado do padre vigário de Goia-
na. E, assim, por amizade reflexa, surdia o poderio dos homens que
no mesmo instante eram investidos das íuneões de Cabos das Ri-
beiras dos Inhamuns e do Qulxeló. Não apenas Salvador, também
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o seu sucessor Manuel Francês, pessoa ligada ao vigário, cumulou
Francisco Ferreira Pedrosa e Lourenço Alves Feitosa com muitas
sesmarias, vastidões imensas de terra por todo o interior cearense.
Os homens de Pernambuco se transformaram em verdadeiros donos
dos sertões cearenses. Lourenço não se contém de prazer. Eram
grandes as distinções e imensurável o seu desejo de dominação. Tudo
lhe caía às mãos a um só tempo, quando "a lei era a vontade do mais
forte e do mais astuto e o desforço e a vindita pessoal substituíam
as disposições do código, sem provocar reparos, antes movendo a
admiração" (B. de Studart). Senhor absoluto, o Comissário "levan-
tava presídios ou sítios em terras alheias com cominação". Féz-se
dos bens de raiz de Búcaro e de outros colonos, ferreteava aqui, metia
o chaníalhão acolá e as desafeições foram crescendo, sobretudo a
dos Montes, também ricos e grandes senhores de terras.
Inconformados com as investidas de Lourenço nos seus domí-
nios, e cem os castigos infligidos a seus vaqueires, mandaram os
Montes queixa ao Governador-Geral de Pernambuco (1721), e este,
por duas vezes, autorizou a um da parcialidade dos Montes, o Cei. João
da Fonseca Ferreira, "para prender a Lourenço, inviolàvelmente",
recebendo a ajuda material do Governador da Capitania. Francês,
todavia, nega-se a fornecer tropas a Fonseca, chamado o "man-
da-chuvas" dos Cariris-Novos, d ando,-lhe, no entanto, o governo
do tapuio Jenipapo e, ardilosamente, determina a suspensão de hos-
tilidades numa carta cominatória "com pena de serem tidos r<*>r de-
sobedientes e Régulos, e os seus bens confiscados para a Coroa".
Bem sabia o que estava fazendo. Já conhecia demais o seu prote-
gido (20.4.1722).
O homem dos Cariris-Novos, agora governante dos sanguiná-
rios Jenipapos, desconfiava a seu tanto da honraria recebida, quan-
do buscava outras atribuições. No começo do ano seguinte (1723), volta
ao Forte e ousou provocar os sentimentos e as inclinações do Gover-
nador. Procede astuciosamente, pede mercê do sítio Lagoa, que èie
mesmo confessa "pertencendo as ilhargas do Comissário-Geral An-
tónio Mendes Lobato". Mais uma surpresa, pois lhe é concedida a terra
do maioral dos homens das Alagoas. Naturalmente, a si mesmo per-
guntou: ~-0 que significa esta atitude do Governador? Pagará a pena
continuar parcial dos Montes? E de inquirição a inquirição no ca-
minho de seus interesses, encontra um dia do ano de 1724, ostensi-
vamente agressivo sob o pálio da Justiça, as hordas de Lourenço e nu-
ma surpresa terrível a elas se alia para o ataque da fazenda "Pilar",
do Cel. Francisco de Montes e Silva, participando do fuzilamento su-
mário da 33 vaqueiros de seu antigo companheiro de garimpo nas
minas do Sul da capitania, na mineração de ouro, patrocinada pela
Câmara de Aquirás, nos Idos de 1715.
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REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA
Estava presente ao massacre José Mendes Machado (o Tuba-
rão), que impassível negou assistência religiosa aos executados e, na
orgia do sangue, mandou fazer carga por três lados e fèz rufar
uma caixa de guerra. Ávido de pecùnia para voltar à Pátria com
os bolsos recheados, o Ouvidor era realmente uma figura execranda.
Juiz sem dignidade, sob qualquer pretexto "tira devassas parti-
culares" e cobra altíssimas custas de 80$000. Obrigou certos colonos
a vender 40 vacas a 23000 e embolsou-lhes o apurado. Invadiu a al-
eada do Juiz Eclesiástico, dos casos da competência do Santo Ofí-
cio, "de todo rapaz que tinha pecado com mulher solteira cobrava
4$000 e se tinha pecado duas vezes não fazia menor redução de
8S000".
As populações sertanejas, aterrorizadas, sentem-se entre dois
fogos, cada qual o mais virulento — a luta fratricida das armas e a
tirania do Ouvidor. Necessitam providências para debelar uma e ex-
tinguir a outra. Assim, queixam-se ao Governador da Capitania.
Em face dos graves acontecimentos, "em reunião dos oficiais da
Capitania assentara-se em expedir dois Cabos com 200 homens, in-
clusive os tapuios Paiacu e Canindé, com ordem para exterminar o
tapuio (de corso» e retirar das ribeiras os Cabeças de uma e outra
parcialidade". O calendário marcava 25 de marco de 1725, e parecia
que o interior cearense se havia incendiado. Montes e Feitosas es-
tavam engalfinhados. Também, fronteira além, lá na terra dos ban-
deirantes — Pires e Camargos disputavam a trabuco a maioria do
plenário da Câmara de São Paulo. O exemplo dos graúdos conta-
minara os miúdos.
"A história desta truculência de que se originaria o cangaço
(Pedro Calmon) é a mesma história de todas aquelas lutas de fa-
milias que trouxeram a colónia em polvorosa e que nela sua pre-
eminência marca um período inteiro da então Capitania do CEARÁ
GRANDE. Muito se tem escrito sobre elas, muito se há ainda de es-
crever, porque episódios, que mais se acharam, vão aos poucos sendo
exumados de velhos papéis, senhores de tantos segredos.
O Governador Manuel Francês, em 30 de maio, comunicou à Câ-
mara de Aquirás "que continuando a exaltação dos ânimos resol-
vera seguir para a Ribeira do Jaguaribe". Acomnanhado de 10 sol-
dados de infantaria, 24 homens de cavalos e um sargento pago e 30
índios flecheiros, chegou com a escolta até Arneiroz, ninho dos Fei-
tosas. Ao seu regresso, fèz uma nova comunicação "ao Senado da
Câmara de Aquirás, narrando vários crimes dos Feitosas e sua par-
cialidade".
A tranquilidade no interior estava para chegar. Assim, para
fugir aos inimigos que fizera, o Ouvidor Machado andou "mais de
600 léguas para se recolher à Bahia." Tementes de confissões e fu-
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REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA
gindo a serem tidos por desobedientes e régulos, preferiram o os-
tracismo. Os irmãos Feitosas e o Cel. João da Fonseca Ferreira com
os Jenipapos homiziar am-se no Piauí; o Capitão António de Sousa
Goulart, na Bahia. Da outra parcialidade, os Mendes Lobato, nas
Alagoas; o Cel. Teodósio Nogueira Lima e o Ten.-Cel. António Gon-
çalves de Sousa, em Pernambuco; os Barbalhos, enfim, na Paraíba.
Não tardou que os Tabajaras, auxiliares dos Montes, regressassem
a Maranguape, donde pediram, arrependidos, perdão a El-Reí. A
aguerrida nação dos Jucás recolheu-se aos seus pagos, no rio Vo-
coró, que desagua perto da serra dos Boqueirões.
No decurso da luta, muitos desapareceram, mesmo alguns es-
tranhos aos particulares interesses das parcialidades combatentes,
mas solidários por parentesco. Uma palavra qualquer, dita a favor
de um grupo, marcava a animosidade do contendor. E o homem do
sertão, quando falava em época de guerra, os vocábulos que emitia
tinha o peso do chumbo ou a ligeireza da flecha. Assim, moireu
peia língua às mãos assassinas de um filho do CeL Francisco Foito-
sa, o Capitão Luís Coelho Vidal, no Tauã. Varado de bala, cai o Ca-
pitão Manuel de Montes Pereira, do Bom Sucesso, e em vindita man-
dam os Montes matar o Capitão Alvaro de Lima e Oliveira, noa Itans,
da parcialidade Feitosa. Não se sabe bem ao certo, mas Francisco,
filho do colonizador Francisco Alves Feitosa, não é visto no resto
dos autos do inventário de seu pai. Grandes baixas se fizeram de
um como do outro lado. Era encarniçada a guerrilha.
Para apurar responsabilidades, foi enviado de Lisboa o Dr. Ou-
vidor António Loureiro de Medeiros (1728), cópia fiel do Judas dos
trinta dinheiros, vendeu por 18.000 cruzados a absolvição dos im-
plicados nas "cento e quarenta e sete mortes, feitas e mandadas
fazer pelos das famílias Montes e Feitosas com os seus pâmais" e,
por éste motivo, "foi remetido prèso para Portugal, por ordem do
Governador de Pernambuco." Dois outros ocupantes da Ouvidoria
não satisfizeram. Encontrava-se, assim, a Capitania sob o império
da desordtm. Mas, reinava D. João V, o Magnânimo. Esbanjador do
ouro das lavras do Brasil, era todavia amigo da ordem e da paz.
Condoído dos súditos "do país do Jaguaribe", deu ordens ao Con-
selho Ultramarino para que sem demora indique um juiz capaz de
pôr cobro àquelas tropelias. E um único nome é lembrado e unani-
memente escolhido: António Marques Cardoso, que se encontrava na
Bahia, aguardando a qualquer momento a sua nomeação para De-
sembargador de S. Majestade.
Figura respeitável dos pretórios de Lisboa, o novo magistrado
recebeu instruções, com amplos poderes, para devassar as subleva-
Ç.Õ1S da Capitania, ao tempo do Governador Manuel Francês., que
devia ser sindicado, bem assim os Ouvidores Mendes Machado e
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Medeiros, tendo aqui chegado nos últimos dias de dezembro de 1733.
Agiu inflexível c corajosamente na apuração dos fatos delituosos e
ao seu Rei em 20 de abril de 1738 "informa sobre as residências que
tirou naquela capitania e da conveniência em se prenderem os cul-
pados nas diligências das famílias Montes e Feitosas, bem como de-
mitir dos postos da ORDENANÇA todos os membros destas famílias
a fim de se evitarem novas sublevações".
A conduta de Cardoso prova à saciedade que ainda havia homem
probo e honrado. No afã de definir responsabilidades, durante quase
onze anos demorou-se nos sertões cearenses para implantar, como
implantou neste recanto do domínio português, de então, a tranqui-
lidade e a ordem. Em 1745 em um dia de março, entregava a S. Ma-
jestade Fidelíssima os volumosos autos da devassa "e tudo que se
contém com as testemunhas que nela se nerguntaram e documen-
tos juntos". E no dia 18 de novembro daquele ano "o Conselho Ul-
tramarino leva ao conhecimento de El Rei a maneira honesta e pru-
dente com que se houve no Ceará o Des. António Marques Cardo-
so", sem dúvida o Pacificador da família cearense. Deixou quietação
¡:or toda a parte. A paz baixou sobre os sertões bravios. O antigo do-
no da terra, temente a Deus, assistia resignado às aulas de catecis-
mo que lhe ministrava o cura da Aldeia, mas com um ouvido na
prédica e o outro no tempo. O gentio de corso desaparecera, pela
acão do trabuco. Em Arneiro, da outrora pujante guarda pretoriana
dos Feitosas (os Jucás) restavam apen" algumas dezenas de casais
de índios desfigurados.
Um clima de absoluta segurança era respirado nos risonhos ser-
tões dos Inhamuns. O fazendeiro sentia-se feliz, vendo os seus cam-
pos prósperos de gado vacum e bonitos cavalos. Agora, sonhava com
novas para a terra que adotar a para seu domicilio e, não tardou,
o Bispo de Pernambuco, aos 7 de dezembro de 1755, criava com área
dilatada a Freguesia de Nossa Senhora do Carmo dos Inhamuns,
com sede em São Mateus- Seus limites iam dos domínios dos Caririà
às "Terras dos Caritheûs", por isso que ainda hoje uma parte do
município de Independência pertence à paróquia de Tauã. Foi um
grande acontecido que alegrou a sertanejama toda. Alegria só igua-
lada à notícia que o Conde de Vela Flor faz saber de uma Carta
Régia, que permitia a criação de uma vila nos Inhamuns. Infeliz-
mente, contra a medida se voltaram os vereadores da Câmara do
Icó. Não era ainda chegada a hora da emancipação política da re-
gião das ricas pastagens. Todavia, doze anos depois, em 1778, com
destaque figurava como "contribuinte dos Dízimos Reais, no qua-
dro administrativo da Capitania, na seguinte ordem: 1 — Ceará
(Foite, Aquiraz e Montemor o Novo)1, 2 — Jaguaribe (Russas); 3
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— Ico; i — Acaraú; 5 — Curuyaú (Granja); 6 — Quixeramobim; 7
— Inhamuns e 8 — Carlrls-Novos".
Com certa importancia apresentava-se o distrito aos olhos da
Capitania com o seu Corpo de Ordenança, denominado 32 Regi-
mento de Cavalaria Ligeira, sob o comando do Cel. Manuel Ferreira
Ferro, íilho do colonizador Francisco Feitosa. Éste comando pas-
sou, mais tarde, para o seu parente Capitão-Mor José Alves Feitosa,
até 1823, ano de seu falecimento. Por esse tempo, os Araújos eram
senhores da situação política, detentores das mais opulentas fortu-
nas, consideradas em grupos de família e, como uma consequência
natural, reclamaram o comando superior da importante corpora-
ção. Assim, apareceu na pessoa do Cel. João de Araújo Chaves (o do
Estreito) o terceiro Oficial Superior do 32 Regimento.
Em 1831, as Milícias dos Regimentos desapareceram para dar
lugar à "biiosa" Guarda Nacional do Império. E os homens da Corte,
numa homenagem que tanto tinha de justa como de honrosa, aos
homens dos Inhamuns, colocaram em condições de igualdade os pri-
vilégios da Capital da Provincia e do planalto inhamunhense. Ao
Regimento substituiu uma Legião com dois batalhões, um em Tauá
e outro em São Mateus. Ocuparam seu comando superior os Coro-
néis João de Araújo Chaves, Inácio de Oliveira Bastos, Francisco
Fernandes Vieira e Joaquim Leopoldino de Araújo Chaves, filho do
primeiro. A Legião possuia uma mobilidade extraordinária. Sem
maiores complicações, dispensados os trâmites do "alto" deslocava
a sua sede fàcilmente; acompanhava o comando superior. Quando
este era Carcará, ela estava em São Mateus; quando este era Araú-
jo, ela voltava por São João do Príncipe.
A fabulosa corporação dos Inhamuns era constituída de serta-
nejos da boa raça de vaqueiros, valentes e nobres, com os seus fei-
tos nas revoluções de Filgueiras, Tristão Gonçalves e Pinto Madeira,
nomes registrados nas páginas das histórias. Hábeis na técnica do
pastoreio, acostumados aos perigos das corridas nas caatingas bru-
tas, quando na guerra faziam prodígios.
Na primeira metade do século passado, o Cariri era como cra-
tera vulcânica em intermitentes irrupções. Inflamados pelas armas
e pelas ideias, largavam as várzeas do Salgado, sem olhar perigos,
sem divisar barreiras a impetuosidade de sua marcha. Também pelas
armas e pelas ideias, vezes repetidas, os vaqueiros dos Inhamuns
com eles terçaram armas. No expirar do ano de 1831, as hordas de
Pinto Madeira marcharam como um rolo compressor, esmagando
a todos. Na vanguarda, dois padres concitando o povo e, um déles,
à maneira dos sacerdotes de Mafoma, em guerra santa, o cónego
António Manuel de Sousa benzia cacetes. As populações do Nor-
deste assustaram-se. Mestre Câmara Cascudo nos diz: "A fama de
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REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ 111
Pinto Madeira é de violência, rapìnagem e brutalidade dissolvido no
espírito do povo que o viu como invasor". Possuído de incontido
ódio, cometia desatinos. Era a lei da guerra. Vencer a qualquer preço.
Em 27 de dezembro daquele ano, o Cel. Luís Rodrigues Chaves
viu-se fragorosamente derrotado pelo Condestável do Cariri. No co-
meço do ano seguinte, um copioso inverno alagava os caminhos do
sul da Provincia, formando nos brejos verdadeiros sumidouros.
Vindo de Santana, o Cel. Manuel de Barros Cavalcante, famoso ca-
bo-de-guerra que lutou contra Fidié, no Maranhão, caía numa cila-
da, vendo amargurado os seus soldados quando não varados de bala,
sepultados vivos nos brejos traiçoeiros. Os governistas sofriam ao
mesmo tempo nova derrota na serra de S. Pedro. E como uma mole
imensa, inebriada com sucessivas vitórias as hostes de Pinto Ma-
deira, calculada em 2 000 homens, divididas em duas colunas, inves-
te para São Mateus e para o Icó.
O Governo havia mandado combater aos rebeldes por tropas de
primeira linha sob o comando do Major Francisco Xavier Torres e
se valia da Legião dos Inhamuns que, comandada pelo Cel. João de
Araújo Chaves (o do Estreito), com assistência do Major Francisco
Fernandes Vieira {Quartel Mestre), do Major José do Vale Pedrosa
(Ajudante), três fazendeiros ricos que "não sabiam quantas reses
tinham", avança para o inimigo.
Nas proximidades de São Mateus, fere-se o primeiro combate.
Os pintistas cedem terreno às tropas dos Inhamuns, deixando no
campo de batalha oito mortos, entre eles José Inácio de Freitas, um
dos braços fortes do Chefe Revolucionarlo. Uma semana antes, os
soldados de Térros, em choque renhido com os rebeldes, já entrin-
cheirados nas ruas do Icó, necessitam recuar p'ara detrás de uma
igreja, onde prepara nova carga, agora de cavalaria, ao mesmo tem-
po que os fustiga com tiros de canhão. Os pintistas, finalmente com
36 baixas e muitos feridos, são obrigados a evacuar.
O exército do Major Torres acompanha em perseguição os fu-
gitivos, pelas margens serpenteantes do Salgado, enquanto a Legião
dos Inhamuns, mais para a direita, perseguia de perto a outra co-
luna, numa tentativa de alcançar a serra do Ararine. Dois meses
seguintes (13 de junho), "as tropas dos Inhamuns, sob o comando
do Major Francisco Fernandes Vieira, encontram-se no lugar Ca-
choeira, na estrada que liga Santanópole a Assaré, mais perto da-
quela do que desta, um numeroso troço de pintistas, dirigido pelo
cabecilha Queiroz, que morreu em combate" (Irineu Pinheiro). Neste
encontro foram grandes as uerdas.
o inimigo se dispersa. Muitos se entregam às forças legalistas.
Outros demandam os Eitados vizinhos, buscando abrigo seguro. Es-
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tava no fim a luta fratricida. Missão cumprida, os legionários inha-
munhenses tornam aos lares.
Na ânsia de reverem os seus, marcham dia e noite, sem mostras
de fadiga, pelo milagre da "saudade de casa". A caminhada de volta
é feita pelas várzeas do Salgado, tendo Icó como passagem íorçada.
A vanguarda da Legião, com Fernandes Vieira à frente, aproxima-
sse da velha vila. Cheio de brio, ensoberbecido pelos seus feitos guer-
reiros, o major manda anunciar pelo corneteiro a sua entrada tri-
unfal. Os relógios marcavam uma hora da madrugada e o sopro forte
do estridente clarim a todos acorda. Sùbitamente um tremor abala
os nervos daquele povo já sofrido de recente batalha. Até o Vigário
da Freguesia de Nossa Senhora do ó ficou espavorido ante o clan-
gorar da trombeta. Conce d amos-lhe, por um instante, a palavra. É
o próprio Padre José Vicente Pereira que, com sabor, retrata a cena
patética em que estava envolvido: "Foi uma quadra de horrores
aquela guerra do Pinto. Ainda hoje sinto medo, falando nisto. Uma
noite, tinha tomado o meu chá, quando uma corneta me feriu aos
ouvidos! Sarapantado e atónito, saltei da rede, onde já me tinha
metido, corro para fora, e fui esbarrar dentro de uma lagoa. Me
acompanhou o meu moleque, que me dizia: Não corra, meu senhor,
e parou à beira. Rapaz, lhe disse, com o coração a me sair da boca,
vai saber o que é aquilo. Na volta, me disse éle: Não é nada, meu
senhor, é o major Francisco Fernandes que mandou tocar corneta.
Saí então todo molhado, fui para casa. Abri o oratório e rezei: Meu
Deus, bom pai e senhor, tende misericórdia de nós! Dai àquele
avarento quanta terra éle quiser, muito gado, muito dinheiro, muito
negro; mas por quem sois, não concedais àquele malvado uma
corneta!"
Não resta dúvida de que se prevaleceu de um direito que lhe
assistia, de recorrer ao Divino, mas o que nos intriga, em tôda esta
história, é que o padre, possuído de medo ao sentir perigo iminente,
ao invés de recorrer à vastidão dos campos, "ganhar o mato", como
em outros tempos em tais circunstâncias faziam os nossos avós, foi
éle meter-se nas águas frias de uma lagoa. Com que consciência te-
ria recebido êle o toque da corneta da Legião dos Inhamuns? Nin-
guém sabe ao certo. Mas uma ideia me ocorre no momento: é pos-
sível que éle tenha laborado em lamentável equívoco: tomara aque-
las notas do clarim como sendo o clangor das trombetas do Vale de
Josafá, anunciando o dia de Juízo Final, e como não se julgasse em
boas condições de lá comparecer, precavidamente, meteu-se nágua
até a altura das orelhas, para ver se assim escapava às ardências do
íubro fogo do Purgatório. Não resta a menor dúvida de que é uma
hipótese, que ao cético pode não convencer, mas abala.
INHAMUNS
GOMES DE FREITAS
O estrugir da roqueira naquela manhã de fim de Inverno, de
um dia de junho de 1719, ecoava nas quebradas distantes, anun-
ciando aos pacatos moradores do Arraial de Nossa Senhora do ó
(Icó) a aproximação da comitiva do Governador da Capitania do
Ceará Grande — Salvador Alves da Silva.
A recepção a que fazia jus personalidade de tamanha impor-
tância, prepara-a o povo, com alegria e dedicação. Casas emban-
deiradas, trajes dominiqueiros, inquietação festiva e nas cozinhas
da "nobreza" a azáfama de mucambas e "slnhás", na disputa das
iguarias para o "banquete".
O povo, voltado para o aparato da "grandeza" presente, exul-
tava, mas alguém no meio do povo trazia o coração referto de
grande satisfação. O governante não andava apenas conhecendo
as paragens dispersas de sua jurisdição. Na maca conduzia mercês
de toda a sorte. Eram títulos honoríficos e despachos de concessões
sesmáricas. O representante do Rei, nas margens do Salgado, entre
o colono rústico e a Indiada esquiva, percebia bem naquele "Viva o
nosso Poderosíssimo Eei D. João V!" o entusiasmo de seus governa-
dos e a voz de comando que os animava. Amigo íntimo do Padre
José Ferreira Gondim, vigário de Goiana e vice-vigárlo de Recife,
olhava com especial deferência para os parentes destes promotores
dos mais ardentes, da festividade.
Quando no salão "nobre" de piso de terra batida de uma grande
casa de taipa, coberta de telha, se desafivelaram as correias da
maca governamental, brotaram da papelama os títulos de Sargento-
-Mor para o ajudante Francisco Ferreira Pedrosa e de Comissário-
-Geral para Lourenço Alves Feitosa (promovido de simples Alferes)
e para Francisco Alves Feitosa a patente de Coronel de Cavalaria.
O primeiro era irmão, o segundo, cunhado do padre vigário de Goia-
na. E, assim, por amizade reflexa, surdia o poderio dos homens que
no mesmo instante eram investidos das íuneões de Cabos das Ri-
beiras dos Inhamuns e do Qulxeló. Não apenas Salvador, também
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o seu sucessor Manuel Francês, pessoa ligada ao vigário, cumulou
Francisco Ferreira Pedrosa e Lourenço Alves Feitosa com muitas
sesmarias, vastidões imensas de terra por todo o interior cearense.
Os homens de Pernambuco se transformaram em verdadeiros donos
dos sertões cearenses. Lourenço não se contém de prazer. Eram
grandes as distinções e imensurável o seu desejo de dominação. Tudo
lhe caía às mãos a um só tempo, quando "a lei era a vontade do mais
forte e do mais astuto e o desforço e a vindita pessoal substituíam
as disposições do código, sem provocar reparos, antes movendo a
admiração" (B. de Studart). Senhor absoluto, o Comissário "levan-
tava presídios ou sítios em terras alheias com cominação". Féz-se
dos bens de raiz de Búcaro e de outros colonos, ferreteava aqui, metia
o chaníalhão acolá e as desafeições foram crescendo, sobretudo a
dos Montes, também ricos e grandes senhores de terras.
Inconformados com as investidas de Lourenço nos seus domí-
nios, e cem os castigos infligidos a seus vaqueires, mandaram os
Montes queixa ao Governador-Geral de Pernambuco (1721), e este,
por duas vezes, autorizou a um da parcialidade dos Montes, o Cei. João
da Fonseca Ferreira, "para prender a Lourenço, inviolàvelmente",
recebendo a ajuda material do Governador da Capitania. Francês,
todavia, nega-se a fornecer tropas a Fonseca, chamado o "man-
da-chuvas" dos Cariris-Novos, d ando,-lhe, no entanto, o governo
do tapuio Jenipapo e, ardilosamente, determina a suspensão de hos-
tilidades numa carta cominatória "com pena de serem tidos r<*>r de-
sobedientes e Régulos, e os seus bens confiscados para a Coroa".
Bem sabia o que estava fazendo. Já conhecia demais o seu prote-
gido (20.4.1722).
O homem dos Cariris-Novos, agora governante dos sanguiná-
rios Jenipapos, desconfiava a seu tanto da honraria recebida, quan-
do buscava outras atribuições. No começo do ano seguinte (1723), volta
ao Forte e ousou provocar os sentimentos e as inclinações do Gover-
nador. Procede astuciosamente, pede mercê do sítio Lagoa, que èie
mesmo confessa "pertencendo as ilhargas do Comissário-Geral An-
tónio Mendes Lobato". Mais uma surpresa, pois lhe é concedida a terra
do maioral dos homens das Alagoas. Naturalmente, a si mesmo per-
guntou: ~-0 que significa esta atitude do Governador? Pagará a pena
continuar parcial dos Montes? E de inquirição a inquirição no ca-
minho de seus interesses, encontra um dia do ano de 1724, ostensi-
vamente agressivo sob o pálio da Justiça, as hordas de Lourenço e nu-
ma surpresa terrível a elas se alia para o ataque da fazenda "Pilar",
do Cel. Francisco de Montes e Silva, participando do fuzilamento su-
mário da 33 vaqueiros de seu antigo companheiro de garimpo nas
minas do Sul da capitania, na mineração de ouro, patrocinada pela
Câmara de Aquirás, nos Idos de 1715.
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Estava presente ao massacre José Mendes Machado (o Tuba-
rão), que impassível negou assistência religiosa aos executados e, na
orgia do sangue, mandou fazer carga por três lados e fèz rufar
uma caixa de guerra. Ávido de pecùnia para voltar à Pátria com
os bolsos recheados, o Ouvidor era realmente uma figura execranda.
Juiz sem dignidade, sob qualquer pretexto "tira devassas parti-
culares" e cobra altíssimas custas de 80$000. Obrigou certos colonos
a vender 40 vacas a 23000 e embolsou-lhes o apurado. Invadiu a al-
eada do Juiz Eclesiástico, dos casos da competência do Santo Ofí-
cio, "de todo rapaz que tinha pecado com mulher solteira cobrava
4$000 e se tinha pecado duas vezes não fazia menor redução de
8S000".
As populações sertanejas, aterrorizadas, sentem-se entre dois
fogos, cada qual o mais virulento — a luta fratricida das armas e a
tirania do Ouvidor. Necessitam providências para debelar uma e ex-
tinguir a outra. Assim, queixam-se ao Governador da Capitania.
Em face dos graves acontecimentos, "em reunião dos oficiais da
Capitania assentara-se em expedir dois Cabos com 200 homens, in-
clusive os tapuios Paiacu e Canindé, com ordem para exterminar o
tapuio (de corso» e retirar das ribeiras os Cabeças de uma e outra
parcialidade". O calendário marcava 25 de marco de 1725, e parecia
que o interior cearense se havia incendiado. Montes e Feitosas es-
tavam engalfinhados. Também, fronteira além, lá na terra dos ban-
deirantes — Pires e Camargos disputavam a trabuco a maioria do
plenário da Câmara de São Paulo. O exemplo dos graúdos conta-
minara os miúdos.
"A história desta truculência de que se originaria o cangaço
(Pedro Calmon) é a mesma história de todas aquelas lutas de fa-
milias que trouxeram a colónia em polvorosa e que nela sua pre-
eminência marca um período inteiro da então Capitania do CEARÁ
GRANDE. Muito se tem escrito sobre elas, muito se há ainda de es-
crever, porque episódios, que mais se acharam, vão aos poucos sendo
exumados de velhos papéis, senhores de tantos segredos.
O Governador Manuel Francês, em 30 de maio, comunicou à Câ-
mara de Aquirás "que continuando a exaltação dos ânimos resol-
vera seguir para a Ribeira do Jaguaribe". Acomnanhado de 10 sol-
dados de infantaria, 24 homens de cavalos e um sargento pago e 30
índios flecheiros, chegou com a escolta até Arneiroz, ninho dos Fei-
tosas. Ao seu regresso, fèz uma nova comunicação "ao Senado da
Câmara de Aquirás, narrando vários crimes dos Feitosas e sua par-
cialidade".
A tranquilidade no interior estava para chegar. Assim, para
fugir aos inimigos que fizera, o Ouvidor Machado andou "mais de
600 léguas para se recolher à Bahia." Tementes de confissões e fu-
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gindo a serem tidos por desobedientes e régulos, preferiram o os-
tracismo. Os irmãos Feitosas e o Cel. João da Fonseca Ferreira com
os Jenipapos homiziar am-se no Piauí; o Capitão António de Sousa
Goulart, na Bahia. Da outra parcialidade, os Mendes Lobato, nas
Alagoas; o Cel. Teodósio Nogueira Lima e o Ten.-Cel. António Gon-
çalves de Sousa, em Pernambuco; os Barbalhos, enfim, na Paraíba.
Não tardou que os Tabajaras, auxiliares dos Montes, regressassem
a Maranguape, donde pediram, arrependidos, perdão a El-Reí. A
aguerrida nação dos Jucás recolheu-se aos seus pagos, no rio Vo-
coró, que desagua perto da serra dos Boqueirões.
No decurso da luta, muitos desapareceram, mesmo alguns es-
tranhos aos particulares interesses das parcialidades combatentes,
mas solidários por parentesco. Uma palavra qualquer, dita a favor
de um grupo, marcava a animosidade do contendor. E o homem do
sertão, quando falava em época de guerra, os vocábulos que emitia
tinha o peso do chumbo ou a ligeireza da flecha. Assim, moireu
peia língua às mãos assassinas de um filho do CeL Francisco Foito-
sa, o Capitão Luís Coelho Vidal, no Tauã. Varado de bala, cai o Ca-
pitão Manuel de Montes Pereira, do Bom Sucesso, e em vindita man-
dam os Montes matar o Capitão Alvaro de Lima e Oliveira, noa Itans,
da parcialidade Feitosa. Não se sabe bem ao certo, mas Francisco,
filho do colonizador Francisco Alves Feitosa, não é visto no resto
dos autos do inventário de seu pai. Grandes baixas se fizeram de
um como do outro lado. Era encarniçada a guerrilha.
Para apurar responsabilidades, foi enviado de Lisboa o Dr. Ou-
vidor António Loureiro de Medeiros (1728), cópia fiel do Judas dos
trinta dinheiros, vendeu por 18.000 cruzados a absolvição dos im-
plicados nas "cento e quarenta e sete mortes, feitas e mandadas
fazer pelos das famílias Montes e Feitosas com os seus pâmais" e,
por éste motivo, "foi remetido prèso para Portugal, por ordem do
Governador de Pernambuco." Dois outros ocupantes da Ouvidoria
não satisfizeram. Encontrava-se, assim, a Capitania sob o império
da desordtm. Mas, reinava D. João V, o Magnânimo. Esbanjador do
ouro das lavras do Brasil, era todavia amigo da ordem e da paz.
Condoído dos súditos "do país do Jaguaribe", deu ordens ao Con-
selho Ultramarino para que sem demora indique um juiz capaz de
pôr cobro àquelas tropelias. E um único nome é lembrado e unani-
memente escolhido: António Marques Cardoso, que se encontrava na
Bahia, aguardando a qualquer momento a sua nomeação para De-
sembargador de S. Majestade.
Figura respeitável dos pretórios de Lisboa, o novo magistrado
recebeu instruções, com amplos poderes, para devassar as subleva-
Ç.Õ1S da Capitania, ao tempo do Governador Manuel Francês., que
devia ser sindicado, bem assim os Ouvidores Mendes Machado e
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Medeiros, tendo aqui chegado nos últimos dias de dezembro de 1733.
Agiu inflexível c corajosamente na apuração dos fatos delituosos e
ao seu Rei em 20 de abril de 1738 "informa sobre as residências que
tirou naquela capitania e da conveniência em se prenderem os cul-
pados nas diligências das famílias Montes e Feitosas, bem como de-
mitir dos postos da ORDENANÇA todos os membros destas famílias
a fim de se evitarem novas sublevações".
A conduta de Cardoso prova à saciedade que ainda havia homem
probo e honrado. No afã de definir responsabilidades, durante quase
onze anos demorou-se nos sertões cearenses para implantar, como
implantou neste recanto do domínio português, de então, a tranqui-
lidade e a ordem. Em 1745 em um dia de março, entregava a S. Ma-
jestade Fidelíssima os volumosos autos da devassa "e tudo que se
contém com as testemunhas que nela se nerguntaram e documen-
tos juntos". E no dia 18 de novembro daquele ano "o Conselho Ul-
tramarino leva ao conhecimento de El Rei a maneira honesta e pru-
dente com que se houve no Ceará o Des. António Marques Cardo-
so", sem dúvida o Pacificador da família cearense. Deixou quietação
¡:or toda a parte. A paz baixou sobre os sertões bravios. O antigo do-
no da terra, temente a Deus, assistia resignado às aulas de catecis-
mo que lhe ministrava o cura da Aldeia, mas com um ouvido na
prédica e o outro no tempo. O gentio de corso desaparecera, pela
acão do trabuco. Em Arneiro, da outrora pujante guarda pretoriana
dos Feitosas (os Jucás) restavam apen" algumas dezenas de casais
de índios desfigurados.
Um clima de absoluta segurança era respirado nos risonhos ser-
tões dos Inhamuns. O fazendeiro sentia-se feliz, vendo os seus cam-
pos prósperos de gado vacum e bonitos cavalos. Agora, sonhava com
novas para a terra que adotar a para seu domicilio e, não tardou,
o Bispo de Pernambuco, aos 7 de dezembro de 1755, criava com área
dilatada a Freguesia de Nossa Senhora do Carmo dos Inhamuns,
com sede em São Mateus- Seus limites iam dos domínios dos Caririà
às "Terras dos Caritheûs", por isso que ainda hoje uma parte do
município de Independência pertence à paróquia de Tauã. Foi um
grande acontecido que alegrou a sertanejama toda. Alegria só igua-
lada à notícia que o Conde de Vela Flor faz saber de uma Carta
Régia, que permitia a criação de uma vila nos Inhamuns. Infeliz-
mente, contra a medida se voltaram os vereadores da Câmara do
Icó. Não era ainda chegada a hora da emancipação política da re-
gião das ricas pastagens. Todavia, doze anos depois, em 1778, com
destaque figurava como "contribuinte dos Dízimos Reais, no qua-
dro administrativo da Capitania, na seguinte ordem: 1 — Ceará
(Foite, Aquiraz e Montemor o Novo)1, 2 — Jaguaribe (Russas); 3
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— Ico; i — Acaraú; 5 — Curuyaú (Granja); 6 — Quixeramobim; 7
— Inhamuns e 8 — Carlrls-Novos".
Com certa importancia apresentava-se o distrito aos olhos da
Capitania com o seu Corpo de Ordenança, denominado 32 Regi-
mento de Cavalaria Ligeira, sob o comando do Cel. Manuel Ferreira
Ferro, íilho do colonizador Francisco Feitosa. Éste comando pas-
sou, mais tarde, para o seu parente Capitão-Mor José Alves Feitosa,
até 1823, ano de seu falecimento. Por esse tempo, os Araújos eram
senhores da situação política, detentores das mais opulentas fortu-
nas, consideradas em grupos de família e, como uma consequência
natural, reclamaram o comando superior da importante corpora-
ção. Assim, apareceu na pessoa do Cel. João de Araújo Chaves (o do
Estreito) o terceiro Oficial Superior do 32 Regimento.
Em 1831, as Milícias dos Regimentos desapareceram para dar
lugar à "biiosa" Guarda Nacional do Império. E os homens da Corte,
numa homenagem que tanto tinha de justa como de honrosa, aos
homens dos Inhamuns, colocaram em condições de igualdade os pri-
vilégios da Capital da Provincia e do planalto inhamunhense. Ao
Regimento substituiu uma Legião com dois batalhões, um em Tauá
e outro em São Mateus. Ocuparam seu comando superior os Coro-
néis João de Araújo Chaves, Inácio de Oliveira Bastos, Francisco
Fernandes Vieira e Joaquim Leopoldino de Araújo Chaves, filho do
primeiro. A Legião possuia uma mobilidade extraordinária. Sem
maiores complicações, dispensados os trâmites do "alto" deslocava
a sua sede fàcilmente; acompanhava o comando superior. Quando
este era Carcará, ela estava em São Mateus; quando este era Araú-
jo, ela voltava por São João do Príncipe.
A fabulosa corporação dos Inhamuns era constituída de serta-
nejos da boa raça de vaqueiros, valentes e nobres, com os seus fei-
tos nas revoluções de Filgueiras, Tristão Gonçalves e Pinto Madeira,
nomes registrados nas páginas das histórias. Hábeis na técnica do
pastoreio, acostumados aos perigos das corridas nas caatingas bru-
tas, quando na guerra faziam prodígios.
Na primeira metade do século passado, o Cariri era como cra-
tera vulcânica em intermitentes irrupções. Inflamados pelas armas
e pelas ideias, largavam as várzeas do Salgado, sem olhar perigos,
sem divisar barreiras a impetuosidade de sua marcha. Também pelas
armas e pelas ideias, vezes repetidas, os vaqueiros dos Inhamuns
com eles terçaram armas. No expirar do ano de 1831, as hordas de
Pinto Madeira marcharam como um rolo compressor, esmagando
a todos. Na vanguarda, dois padres concitando o povo e, um déles,
à maneira dos sacerdotes de Mafoma, em guerra santa, o cónego
António Manuel de Sousa benzia cacetes. As populações do Nor-
deste assustaram-se. Mestre Câmara Cascudo nos diz: "A fama de
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Pinto Madeira é de violência, rapìnagem e brutalidade dissolvido no
espírito do povo que o viu como invasor". Possuído de incontido
ódio, cometia desatinos. Era a lei da guerra. Vencer a qualquer preço.
Em 27 de dezembro daquele ano, o Cel. Luís Rodrigues Chaves
viu-se fragorosamente derrotado pelo Condestável do Cariri. No co-
meço do ano seguinte, um copioso inverno alagava os caminhos do
sul da Provincia, formando nos brejos verdadeiros sumidouros.
Vindo de Santana, o Cel. Manuel de Barros Cavalcante, famoso ca-
bo-de-guerra que lutou contra Fidié, no Maranhão, caía numa cila-
da, vendo amargurado os seus soldados quando não varados de bala,
sepultados vivos nos brejos traiçoeiros. Os governistas sofriam ao
mesmo tempo nova derrota na serra de S. Pedro. E como uma mole
imensa, inebriada com sucessivas vitórias as hostes de Pinto Ma-
deira, calculada em 2 000 homens, divididas em duas colunas, inves-
te para São Mateus e para o Icó.
O Governo havia mandado combater aos rebeldes por tropas de
primeira linha sob o comando do Major Francisco Xavier Torres e
se valia da Legião dos Inhamuns que, comandada pelo Cel. João de
Araújo Chaves (o do Estreito), com assistência do Major Francisco
Fernandes Vieira {Quartel Mestre), do Major José do Vale Pedrosa
(Ajudante), três fazendeiros ricos que "não sabiam quantas reses
tinham", avança para o inimigo.
Nas proximidades de São Mateus, fere-se o primeiro combate.
Os pintistas cedem terreno às tropas dos Inhamuns, deixando no
campo de batalha oito mortos, entre eles José Inácio de Freitas, um
dos braços fortes do Chefe Revolucionarlo. Uma semana antes, os
soldados de Térros, em choque renhido com os rebeldes, já entrin-
cheirados nas ruas do Icó, necessitam recuar p'ara detrás de uma
igreja, onde prepara nova carga, agora de cavalaria, ao mesmo tem-
po que os fustiga com tiros de canhão. Os pintistas, finalmente com
36 baixas e muitos feridos, são obrigados a evacuar.
O exército do Major Torres acompanha em perseguição os fu-
gitivos, pelas margens serpenteantes do Salgado, enquanto a Legião
dos Inhamuns, mais para a direita, perseguia de perto a outra co-
luna, numa tentativa de alcançar a serra do Ararine. Dois meses
seguintes (13 de junho), "as tropas dos Inhamuns, sob o comando
do Major Francisco Fernandes Vieira, encontram-se no lugar Ca-
choeira, na estrada que liga Santanópole a Assaré, mais perto da-
quela do que desta, um numeroso troço de pintistas, dirigido pelo
cabecilha Queiroz, que morreu em combate" (Irineu Pinheiro). Neste
encontro foram grandes as uerdas.
o inimigo se dispersa. Muitos se entregam às forças legalistas.
Outros demandam os Eitados vizinhos, buscando abrigo seguro. Es-
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tava no fim a luta fratricida. Missão cumprida, os legionários inha-
munhenses tornam aos lares.
Na ânsia de reverem os seus, marcham dia e noite, sem mostras
de fadiga, pelo milagre da "saudade de casa". A caminhada de volta
é feita pelas várzeas do Salgado, tendo Icó como passagem íorçada.
A vanguarda da Legião, com Fernandes Vieira à frente, aproxima-
sse da velha vila. Cheio de brio, ensoberbecido pelos seus feitos guer-
reiros, o major manda anunciar pelo corneteiro a sua entrada tri-
unfal. Os relógios marcavam uma hora da madrugada e o sopro forte
do estridente clarim a todos acorda. Sùbitamente um tremor abala
os nervos daquele povo já sofrido de recente batalha. Até o Vigário
da Freguesia de Nossa Senhora do ó ficou espavorido ante o clan-
gorar da trombeta. Conce d amos-lhe, por um instante, a palavra. É
o próprio Padre José Vicente Pereira que, com sabor, retrata a cena
patética em que estava envolvido: "Foi uma quadra de horrores
aquela guerra do Pinto. Ainda hoje sinto medo, falando nisto. Uma
noite, tinha tomado o meu chá, quando uma corneta me feriu aos
ouvidos! Sarapantado e atónito, saltei da rede, onde já me tinha
metido, corro para fora, e fui esbarrar dentro de uma lagoa. Me
acompanhou o meu moleque, que me dizia: Não corra, meu senhor,
e parou à beira. Rapaz, lhe disse, com o coração a me sair da boca,
vai saber o que é aquilo. Na volta, me disse éle: Não é nada, meu
senhor, é o major Francisco Fernandes que mandou tocar corneta.
Saí então todo molhado, fui para casa. Abri o oratório e rezei: Meu
Deus, bom pai e senhor, tende misericórdia de nós! Dai àquele
avarento quanta terra éle quiser, muito gado, muito dinheiro, muito
negro; mas por quem sois, não concedais àquele malvado uma
corneta!"
Não resta dúvida de que se prevaleceu de um direito que lhe
assistia, de recorrer ao Divino, mas o que nos intriga, em tôda esta
história, é que o padre, possuído de medo ao sentir perigo iminente,
ao invés de recorrer à vastidão dos campos, "ganhar o mato", como
em outros tempos em tais circunstâncias faziam os nossos avós, foi
éle meter-se nas águas frias de uma lagoa. Com que consciência te-
ria recebido êle o toque da corneta da Legião dos Inhamuns? Nin-
guém sabe ao certo. Mas uma ideia me ocorre no momento: é pos-
sível que éle tenha laborado em lamentável equívoco: tomara aque-
las notas do clarim como sendo o clangor das trombetas do Vale de
Josafá, anunciando o dia de Juízo Final, e como não se julgasse em
boas condições de lá comparecer, precavidamente, meteu-se nágua
até a altura das orelhas, para ver se assim escapava às ardências do
íubro fogo do Purgatório. Não resta a menor dúvida de que é uma
hipótese, que ao cético pode não convencer, mas abala.
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